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Generais, semideuses e seus amantes

20 de fev. de 2010

Relações sexuais entre dois homens eram aceitas na cultura greco-romana, inclusive no exército
PEDRO DE CASTRO

Aquiles, Hércules e Alexandre são personagens (reais ou fictícios) do mundo greco-romano que, além da bravura e da capacidade de liderança, tinham em comum o fato de se relacionarem sexualmente com outros homens. Se a existência de militares que mantêm relações homoafetivas ainda é vista com ressalva em muitos países, inclusive no Brasil, a realidade era bem diferente entre os povos que geraram muitos dos ícones de heroísmo nas forças armadas.

Os antigos gregos e romanos não concebiam a orientação sexual em termos de hétero, homo ou bissexualidade, e por isso tais personagens não se encaixam nesses conceitos. No entanto, ambas as sociedades estabeleciam uma relação entre a posição ativa ou passiva que um dos parceiros assumia durante o ato sexual e sua cidadania – cidadãos adultos na primeira; escravos, mulheres, estrangeiros e adolescentes, na segunda.

Na Grécia Antiga, a mais difundida e aceita forma de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo – ou homoerotismo – era a pederastia entre homens adultos e adolescentes. Cidadãos plenos (homens adultos, livres e gregos) da pólis com mais de 30 anos cortejavam garotos entre os 13 e 20 anos que viriam a ser cidadãos. O próprio casamento se dava entre homens na casa dos 30 e meninas com metade dessa idade. “Isso não excluía relações com a esposa, escravos e prostitutos, de ambos os sexos. O importante é que o cidadão fosse o ativo”, sintetiza o historiador Daniel Barbo, autor do livro O triunfo do falo: homoerotismo, dominação, ética e política na Atenas Clássica.

O adulto erastes (aquele que ama) se aproximava do jovem erômenos (objeto do amor) no ginásio de esportes e nos banquetes para homens. A relação entre os dois tinha um aspecto pedagógico, uma vez que era função do erastes introduzir o jovem na vida pública grega, nas artes da guerra e servir-lhe de modelo de conduta. “A vida pú bli ca era extremamente complexa e o mais jovem se beneficiava do conhecimento e círculo de amizades do mais velho”, esclarece o historiador. Aos 20 anos, o jovem se tornava um cidadão pleno, e era esperado que a relação acabasse, mas havia certa tolerância se continuasse.

Havia atração sexual entre os dois, que era consumada com mais ou menos frequência, dependendo da pólis. “Para o antigo grego era a forma mais elevada de expressão de Eros, o deus do amor, uma vez que se dava entre iguais. Ao contrário do casamento, em que a mulher era vista como inferior e instrumento de reprodução da vida. A esposa era ligada ao lado animal do homem e o amante, à cultura”, analisa Barbo.
 
Guerreiros


O modelo exemplar desta relação era justamente aquela entre dois guerreiros – Aquiles e Pátroclo, personagens da Ilíada de Homero. “Apesar de a obra, que é do século 9 a.C., não deixar claro qual o caráter do envolvimento entre os dois, a leitura que todo grego do século 6 antes de Cristo fazia era de que se tratava de uma relação pederástica”, observa o doutor em História Social Fábio Lessa, que pesquisa a sexualidade na Grécia clássica. É a morte de Pátroclo em batalha pelas mãos de Heitor, príncipe de Troia, que faz Aquiles retornar à batalha e vingar seu erômenos.

A ideia de que o perigo que se abatia sobre um amante motivaria o guerreiro foi o que levou à criação do Batalhão Sagrado de Tebas, formado por 150 casais de amantes. O ímpeto desse batalhão garantiu a supremacia militar de Tebas sobre a Grécia por quatro décadas, desde a libertação do jugo espartano, em 371 a.C., até a derrota e extermínio para o exército macedônico de Filipe II, em 338 a.C., comandado por seu filho, Alexandre – o mesmo Alexandre que viveria para se tornar um herói clássico nos moldes de Aquiles e manteria uma relação com seu general Hefestião, similar à que havia entre os personagens da Ilíada.

Alexandre e Hefestião eram amigos de infância que lutaram juntos as campanhas macedônicas. Historiadores de períodos posteriores não eram explícitos sobre o envolvimento dos dois, mas a cultura da época torna pouco provável que não houvesse um componente sexual. É relatado que, de passagem pelas ruínas de Troia, Alexandre e Hefestião prestaram homenagens – o primeiro ao túmulo atribuído a Aquiles; o segundo, ao de Pátroclo. Mas a importância de Hefestião fica evidente após sua morte, em 324 a.C. Alexandre ficou arrasado e chorou por vários em dias em cima do corpo do amante, ao fim dos quais cortou seu cabelo curto e colocou as mechas nas mãos do morto, como fizera Aquiles com Pátroclo. O próprio Alexandre morreria poucos meses depois.

Roma

Na Roma republicana, o componente hierárquico no homoerotismo era mais forte. A relação visava somente a satisfação sexual do cidadão com es trangeiros e escravos. O jovem romano atingia a cidadania plena ao 14 anos, o que impedia a prática da pederastia nos moldes gregos, uma vez que a convenção social não permitia a passividade ao adulto. En quanto na Grécia o homoetorismo en volvia os social men te iguais, mas de diferentes idades, em Roma acon tecia en tre ho mens de diferentes ca madas sociais.

“Pelo Direito romano, escravos e mulheres eram propriedades e, portanto, objetos sexuais”, resgata o professor de Anti guidade Greco-romana da Universi dade Fe deral de Pelo tas Pau lo Possamai. Ao longo do declínio da Repú blica e início do Impé rio, no século 1 a.C., a cultura grega foi assimilada e uma forma adaptada de pederastia se tornou comum. O senhor romano buscava no jovem escravo, servo liberto ou estrangeiro não mais somente a satisfação sexual, mas o amor de Eros.

“Para evitar que comandantes assediassem seus subalternos, uma vez que o exército romano era composto por cidadãos, instituiu-se a tradição de levar os escravos amantes durante as longas campanhas. Como acontecia com as prostitutas e os exércitos ocidentais até o século 19”, compara. O homoerotismo passou a ser alvo de críticas cada vez mais contundentes até ser banido no século 4, com a adoção do cristianismo no Império.
 

Pares lendários e históricos


Em alguns casos, a relação era confirmada; em outros, apenas insinuada.


Aquiles e Pátroclo

Os gregos do período clássico viam a relação entre os personagens da Ilíada de Homero como pederástica. A morte de Pátroclo pelas mãos do príncipe troiano Heitor é o principal motivo para o retorno de Aquiles à batalha.

Alexandre e Hefestião

Os dois amigos de infância se reencontraram nas campanhas macedônicas. A relação entre os dois era comparada à de Aquiles com Pátroclo. Alexandre chorou a morte de Hefestião por dias seguidos, morrendo ele próprio meses depois.

Héracles e Iolau

Chamado de Hércules pelos romanos, o semideus teve várias relações pederásticas, a mais famosa delas com seu sobrinho Iolau. Alimentando a tradição grega, Iolau era também o aprendiz de Héracles nas artes da guerra.

Júlio César e Nicomedes

Relatos dão conta de que o jovem Júlio César tivera uma relação homoafetiva com o rei Nicomedes IV durante sua estada no reino da Bitínia. A história não pesou negativamente na sua carreira.

Harmódio e Aristogeiton

Os dois amantes se tornaram símbolos da luta contra a tirania após o assassinato do déspota ateniense Hiparco. A conspiração foi seguida de uma revolta que derrubou a dinastia Peisistratida e estabeleceu a democracia na pólis.
 
Transgressões às regras eram comuns
 
Apesar de a convenção social na Antiguidade greco-romana desaprovar a passividade do cidadão adulto em uma relação com outro homem, essa norma era frequentemente transgredida. Os próprios amores de Aquiles e Alexandre envolvem dois adultos, apesar de nos casais haver uma divisão entre erastes e erômenos que era independente das idades – sendo o erastes sempre o mais poderoso. “A relação idealizada era uma, mas não havia nenhuma regra formal que impedisse a relação entre dois adultos”, pondera o pesquisador Fábio Lessa.


Coisa diversa teria acontecido entre Júlio César e o rei Nicomedes IV da Bitínia. No ano de 80 a.C., o jovem César foi mandado ao reino formar uma frota, mas demorou-se tanto em suas negociações com o rei que se espalhou o rumor de que os dois teriam uma relação amorosa, tomando César a posição passiva. A história lhe rendeu o apelido da “rainha da Bitínia” e anos depois, quando de sua vitória na campanha gálica, seus próprios soldados cantarolavam: “César conquistou a Gália, mas Nicomedes conquistou César”. O futuro ditador de Roma não enfren tou qualquer repreensão.
 
Com o advento do Império, o que o cidadão perdeu de liberdade na vida pública ganhou na vida privada. Foram registrados os primeiros casamentos entre homens nas classes altas. O casamento era uma cerimônia privada e não regulamentada pelo Estado na Ro ma antiga. Um imperador, Nero, casou-se com dois homens: o eunuco Esporo, que teve todas as honras de uma esposa de césar, e Dorifóro, com quem tomava a posição passiva. Depois de sua morte, a memória de Nero foi banida, mas em geral punições eram raras.


“A passividade era vergonhosa como a gula ou a fraqueza para o álcool. Um exagero da carne, um desvio moral, mas não uma aberração, como se passou a ver todo tipo de homoerotismo com o Cristianismo. Essas pessoas eram alvo de sátiras em público, assim como o homossexual é ridicularizado nos programas humorísticos da atualidade”, compara o professor Paulo Possamai.

Problema maior teria o homem com hábitos efeminados – maquiagem, depilação e gestual. Gregos e romanos consideravam as mulheres fracas e incapazes para a política e a guerra, e qualquer hábito de um homem que fosse semelhante ao de uma mulher denunciaria fraqueza e falta de virilidade. A passividade é um exemplo, mas que podia ser negado em público – já a efeminação, não. “Não havia a mínima possibilidade de o homem efeminado fazer carreira na política ou no exército”, julga o professor.

Veja matéria original aqui.

2 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Pedro de Castro:
Artigo formidavel (Generais, semideuses e amantes), que deveria estar em todas as mídias brasileiras.
Falar sobre sexualidade masculina da Antiguidade, sem a ótica judaica-cristã-islâmica é um feito e tanto.
Parabéns por sua coragem e competência!
espartanodefato.blogspot.com

26 de março de 2010 às 18:04
Ricardo disse...

Excelente. Os espartanos estão contentes por esse artigo ter divulgado a verdade. www.espartano.net

8 de abril de 2010 às 03:24

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