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As vozes de Curitiba: do biarticulado à rodoviária

11 de jul. de 2010

Mantras entoados em voz alta e compassada elevam as orações. Cantar ajuda a espantar os males. A neurolinguística defende que as afirmações positivas sejam ditas em alto e bom som para que o cérebro as tome como verdades. Falar ajuda a colocar tudo em pratos limpos. E isso ao mesmo tempo em que a voz sussurrada nos aeroportos nos leva aos céus, literalmente. Vozes e donos da voz mexem com fantasias, comunicam, criam laços e desvendam intenções e emoções muitas vezes impublicáveis.


Talvez porque a voz, segundo a fo noaudióloga Glori nha Beutten müller, seja um “abraço sonoro”. E, como tal, pode ser firme e acolhedor, contido e até indesejado. “Voz boa, assim como um bom abraço, é suave, não é alta nem forte demais, não invade o espaço alheio nem se impõe a qualquer custo. Ela é um elemento de expressão poderoso e, quanto mais consciência se toma disso, melhor. É preciso saber articular, usar bem suas capacidades para que não se perca a qualidade da comunicação”, diz a fonoaudióloga Cida Stier.
 
Depois de anos cantando à noite, Norma Cecy Kaviski ganhou o dia e os anúncios da Rodoferroviária e dos ônibus (Luiz Costa/Divulgação)

Para os profissionais que cuidam da voz e os que a utilizam como instrumento de trabalho, a naturalidade é o limite mais saudável para o seu uso e a característica mais encantadora para o ouvinte. “Quantas pessoas você conhece que não têm necessariamente uma voz bonita, mas contam com uma habilidade com as palavras e atraem muita gente? Beleza é relativa, verdade não. Aquela mania de impostar a voz para falar em público ficou fora de moda, é datado, sem contar que agride as estruturas vocais. A técnica hoje ajuda a extrair o melhor de cada tipo de voz, sem torná-la necessariamente mais grossa”, comenta Cida. “Hoje se corre o risco de impostar a voz e ficar caricato. Não é mesmo Misteeeeer M?”, brinca o jornalista e locutor esportivo Luiz Claudio Nobilo, fazendo referência a Cid Moreira.


O gosto pela naturalidade da voz pode ter uma outra razão, além do conforto ao ouvi-la. A voz é um termômetro perfeito das emoções. E, por isso, torna-se possível “ler” informações disfarçadas pelo discurso. Segundo o psicólogo Tonio Luna, as emoções agem diretamente nas cordas vocais, que alteram sua eficiência, dependendo da intensidade e qualidade da emoção em questão. “Em um momento de estresse e medo, por exemplo, as cordas podem ser estimuladas a produzir sons mais graves ou mais agudos, por alteração de sua espessura. Algumas vezes associamos inconscientemente fatos presentes com outros passados e podemos ter reações emocionais – que afetam a voz, o timbre, a altura – não condizentes com o momento atual”, comenta.

Outra relação entre a voz e as emoções se dá pelos movimentos do diafragma, que controlam a saída e entrada de ar nos pulmões. Este músculo é muito afetado pelos sentimentos e pode, por exemplo, em situações de medo, produzir uma ventilação insuficiente nas cordas vocais, fazendo com que a voz falhe ou apresente alterações de timbre.

Ainda que a técnica vocal seja capaz de controlar boa parte dessas reações, bons observadores conseguem “flagrar” mentiras e tentativas de desviar o foco. Expert em contar histórias, Carlos Daitschman avisa que pequenas pausas, respiração ofegante e muitas ênfases no texto falado podem ajudar a disfarçar intenções escusas. “Contar histórias é uma verdade. Você precisa acreditar naqui lo que está falando para conseguir cativar o outro. Alguns advogados me procuraram para tentar entender o processo da contação de histórias e tentar reduzir o tom ‘oficialesco’ que eles usam durante seus discursos. Quando perceberam que não se trata só de técnica, mas de comprometimento com a verdade, desistiram das aulas”, diz.

Canto das sereias

E o que dizer sobre quem se apaixona por uma voz? Íris Lettieri – a voz oficial dos aeroportos brasileiros – que o diga. A voz sussurrada que anuncia os voos faz marmanjos se arrepiarem. É mais ou menos o mesmo que levou Emílio de Mello a se apaixonar por Fernanda Montenegro em Veja esta Canção, filme de Carlos Diegues, com quatro episódios que contam histórias de amor de naturezas distintas. João, um anotador de jogo do bicho metido a poeta, se encanta por uma voz que vem de um edifício em frente ao seu ponto. Ele imagina e fantasia a dona da voz até se deparar com a personagem de Fernanda Montenegro, bem mais velha que ele, casada com um músico aposentado. Embalado pelo “Samba do Grande Amor”, de Chico Buarque, ele continua amando aquela voz.

A história de cinema ganhou as páginas da vida da locutora Margot Brasil, da Mundo Livre FM. “Eu inventei esse ‘Brasil’ (do sobrenome) depois que ligaram atrás da minha voz na casa da minha avó”, comenta a dona da bela voz rouca que fala na rádio das 12 às 15 horas, todos os dias. “O engraçado é que normalmente as pessoas me imaginam diferente do que eu sou. Acho que rola até uma decepção à primeira vista. As pessoas vêm achando que eu sou negra e aí me veem assim, loira”, brinca. Ela já perdeu a conta, aliás, das vezes que a voz a colocou em saias justas ao telefone: “Era um tal de ‘Bom dia senhor, meu nome é...’ antes de terminarem de falar eu interrompia dizendo que sou mulher e que meu nome é Margot. Aí vinha um sonoro ‘Claro senhor Marcos, como eu ia dizendo...’ Eu já nem fico mais brava com isso”, diverte-se.

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É gooooooollll!

Ao primeiro alô não há dúvidas. A voz parece vir de dentro do rádio. A articulação é de dar inveja, as palavras são bem marcadas e, ao primeiro pedido para narrar um lance de jogo que seja, o discurso atinge a velocidade de uma bola. Ou seria da luz? Pelo menos é o que parece aos não iniciados. Como é possível não se atrapalhar com as palavras falando tão rápido? “Questão de treino”, avisa o jornalista Luiz Claudio Nobilo com seu vozeirão talhado pela natureza e pela locução esportiva. “A gente precisa remontar com a palavra o cenário e a emoção do jogo. Agora, quando o jogo não está com nada a gente precisa contar a história da família dos jogadores e tentar fazer da transmissão um show – se não for de bola, que seja de informação”, diz o “belo da Moóca” – “nem tão belo quanto o apelido e nascido na Moóca, em São Paulo, com muito orgulho.”

Segundo outra voz de ouro do rádio paranaense, Fernando Cesar, narrar futebol é uma arte. “Na tevê, o locutor não precisa ‘desenhar’ a partida. E é isso que a gente faz no rádio. Falar na velocidade da bola acaba sendo uma necessidade. Se eu não segurar o ouvinte, ele pode ir para outra rádio que oferecer uma cobertura melhor”, diz. Sobre os bordões, Fernando – que vem de família de locutores – avisa que os cacos e as vinhetas acabam ajudando a pontuar a locução e a reforçar a personalidade do profissional. “Eu comecei com o ‘sempre de bem com a vida, de bem com você’ para marcar a hora que eu entro e saio do ar. Tinha o Zé Carlos de Araújo, um dos locutores das antigas, que falava sempre ‘voltei’, ‘sou eu’ para reforçar sua participação. Só que isso acaba virando marca pessoal, assim como o ‘vai que é sua’ do Galvão (Bueno) e o ‘pimba na gorduchinha’ do Osmar Santos”, conta.

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Essa voz tem telefone?

Numa noite dessas, a cantora e chefe do cerimonial da prefeitura de Curitiba, Norma Cecy Kaviski, resolveu ir até a Ro doviária de Curitiba para tomar um café. Sentou-se ao balcão e puxou conversa com a atendente: “Que bonita essa voz das gravações, né?” Sem conseguir se conter, a moça desfiou um rosário de impropérios a respeito da gravação, xingou a mulher, a voz e todas as suas gerações anteriores e posteriores. “E eu que estava ali para arrancar um elogio à minha voz. Sim, porque aquela que ela estava xingando era eu. Acho que ela estava cansada, com problemas em casa e acabou descontando na voz. Nem ligo. Prefiro ficar com os elogios do senhor que revirou a rodoviária atrás de uma cabine onde a voz dos anúncios supostamente estaria”, brinca Norma, que aproveita para explicar que não fica por lá o dia inteiro anunciando a chegada e a partida dos ônibus. “Eu gravei uma vez de um a 10, todos os números bem declarados e no mesmo tom, depois as letras e os nomes das cidades que são destinos dos ônibus que saem da Rodoviária. Lá eles montam como querem”, conta. É mais ou menos do mesmo jeito que gravou as mensagens dos ônibus da frota da capital – tarefa que ela divide com Angela Molteni, a voz oficial dos ligeirinhos e biarticulados. “Adoro embarcar num ônibus só para ver como as pessoas reagem aos anúncios de ‘próxima parada...’ dá uma vontade de dizer que sou eu que estou falando”, diverte-se. Coisa que ela já fez: “Um dia vi um garotinho cantando um jingle de uma rede de supermercados, que eu canto há 18 anos. Corri até ele e disse que quem cantava era eu. Ele me olhou assustado e saiu correndo”.

Cantora

Os jingles e dublagens também estão na vida da cantora Ana Cascardo. Ela, que se iniciou nos vocais com a família – no grupo Miragem Som, de Itajubá, em Minas Gerais. Primeiro foi uma cantora instintiva, depois buscou a técnica, trabalhou a voz, se tornou uma intérprete mais sensata e resolveu repassar aos outros seus conhecimentos. “Quem opta pela música popular dificilmente faz um trabalho técnico com a voz. Você vê muita gente na noite com a voz em frangalhos, tentando imitar a característica de um ou outro artista. Depois do estudo da fisiologia da voz, você percebe até onde pode ir, como chegar às notas mais altas sem prejudicar a voz, cantar com mais segurança e mais limpeza na voz e até mesmo saber que tem limites”, conta ela, que lançou recentemente o livro independente Guia Teórico e Prático da Voz, à venda nas livrarias.

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Era uma vez

“Dois sucos de laranja, por favor, sem gelo. E um para ela também, com uma pedrinha só. É que ela tem que cuidar da voz”, diz Carlos Daitschman ao garçom, en quanto nos sentamos à mesa do restaurante às 16h30 para a entrevista. “Ah, eu quero também uma salada com o que você tiver de forte, tipo rúcula e agrião. Troque o ovo, o tomate e o queijo por mais rúcula. Tudo pela voz. Pode escrever aí”, comenta, enquanto ajeita a carteira de cigarros na bolsa. “E, por favor, não espere de mim muita coerência.”

Conversar com um contador de histórias requer tempo e atenção às minúcias do discurso. O movimento que faz com as mãos, as sobrancelhas que se mexem ao relembrar os trejeitos de algum personagem e a voz, que é um capítulo à parte. “Não tenho uma grande voz. Sou tímido, falo baixo e minhas falas numa conversa são quase sempre entremeadas com um ‘hã?’, ‘quê?’. Mas contar uma história depende da minha energia, de conseguir relaxar o diafragma, de encontrar verdade no que eu digo. Voz é soltar o ar e bocejar para massagear o estômago, os intestinos e relaxar o pescoço. Voz é tudo isso junto. Pura psicanálise”, diz ele, revelando ter feito balé clássico, moderno, biodança, teatro e afins até resolver contar histórias.

No começo, achava que “só” ia contar histórias para crianças. Coisa simples que começava com “era uma vez” e terminava com “foram felizes para sempre”. Até ir a um hospital psiquiátrico, quando sua contação “inspirou” um interno a declamar a sua própria história com começo, meio e fim. “Soube de pois que ele nunca tinha falado antes. Daí entendi o poder dessa ferramenta. A voz bem usada, cheia de verdade e carinho, junto com uma boa história, pode acessar a memória afetiva. Por isso eu digo: converse com as pessoas, doe o seu carinho, fale com o seu bebê desde a barriga. Use sua voz. Não a que vem da garganta, mas a que vem do coração”, diz Daitschman, se despedindo rapidamente ao avistar um vendedor de carrinhos de sucatas. “Tudo pode virar uma boa história”, arremata.
 
da Gazeta do Povo

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